Jesus, a igreja e a távola redonda

O excêntrico Rei Arthur era um frenético militante por uma ideologia não tão tolerável entre os reis de sua geração. Sua política medieval fundamentava-se na polêmica máxima de seu reinado: “Todos os homens são iguais.” A partir desta assertiva, surgiu o simbolismo histórico da távola redonda, uma mesa sem cabeceira, sem pontas, sem hierarquização, para que os cavaleiros se sentassem ao redor de seu rei, sem que este, naquele momento, se posicionasse como tal.

Não se sabe até hoje qual foi a reflexão que provocou a diferente conclusão de Arthur, fazendo-o reinventar seu modelo imperial. O que se pode dizer, é que séculos antes do monarca, outro rei havia proposto uma reforma semelhante a seus cavaleiros: “Já vos não chamarei servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho feito conhecer.” (Jo 15:15). Observe que o Rei Jesus também encomendara uma távola redonda para o seu reino.

A Igreja cuja configuração estava na mente de Cristo, era, em relação à matriz judaica, uma utopia anômala. Censurando os escribas e os fariseus, Jesus requereu um formato amplamente discrepante do já posto: entre vós (discípulos, multidões, gentios, Igreja neotestamentária) não haverá mestres (assim como havia entre os judeus: rabinos, sacerdotes, escribas, fariseus e etc), pois eu agora sou o vosso Mestre, e vós todos sois irmãos (iguais, corpo, ovelhas) – Mateus 23:8.

E ainda: não haverá entre vós guias (pastores, bispos e líderes), pois eu sou o vosso guia (seu pastor, seu ministro, seu condutor) – Mateus 23:10. O que Cristo estava desejando elucidar neste texto é que jamais deveria haver, nesta nova dispensação, cargos de liderança em sua Igreja, visto que Ele e exclusivamente Ele ocuparia este espaço com maestria. Não deveria existir aquele que é maior, a não ser que o serviço elevasse alguém a este posto, o que, paradoxalmente, precisaria ocorrer com todos.

Não me refiro aqui ao dom de mestre, o qual Paulo relata em 1 Co 12:28 e que também se encontra em Hb 5:12. Este dom é imputado a quem ensina as Escrituras e possui a “palavra do conhecimento” (1 Co 12:8). Aquilo sobre o qual discorro neste texto é o fato, histórico e contemporâneo, de haver indivíduos que “conduzem” as ovelhas de determinado aprisco, usurpando as categóricas funções que o próprio Jesus atribuiu apenas a si mesmo: guiar, disciplinar e pastorear.

É desnecessário que haja um pastor humano que represente o pastoreio espiritual de Cristo. Nem os apóstolos poderiam exercer tal representatividade. A missão dos mesmos era somente fundamentar, ao lado dos profetas veterotestamentários, a pedra angular, Cristo, no mundo da época (Ef 2:20). Entretanto, diante de tais asseverações, poderíamos nos indagar: por que, então, os apóstolos, os órgãos da revelação, consentiram com a prática tão natural na Igreja Primitiva, de se empossar pessoas ao ofício de pastor local?

A verdade é que a hierarquia é a nossa mãe idosa. É intrínseco a nós, homens, a tentativa de sistematizar organismos inorganizáveis, como é o Reino de Deus, a Igreja universal e invisivelmente reunida no corpo de Cristo. Mas nós demos ordem demais ao reino. Ignoramos o “tempo Kairós” de Jesus e elegemos Matias, em vez de esperar pela escolha de Paulo. Deixamos de sentar em távolas redondas com o nosso Rei, para nomear “servos oficias”, os diáconos, em detrimento de servos comuns que, sendo cristãos, deveriam, da mesma forma, tratar da causa das viúvas e dos órfãos.

Instituímos presbíteros, ao contrário de educar e conscientizar os leigos para, em comunidade e congregação, tomarem posições sensatas como as que são atribuídas apenas aos instituídos. Imploramos a Deus por líderes, porque assim como os israelitas, tendo Deus como Rei, pediram um rei a Samuel, pois os outros povos tinham reis humanos (1Sm 8:1-22), suplicamos por pastores, pois há rabinos, imãs, gurus, sadus e padres nas religiões. Mas Jesus, como já exposto, não deveria ser o único, intransferível e irrepresentável Pastor de ovelhas e Guia espiritual de seus corpos locais?

Não é do nosso interesse a reunião e união onde todos são ministros do evangelho. Haverá sempre um modelo retangular de distância horizontal entre a arquibancada do povo e os assentos setentrionais do clero. E é contra esta peculiaridade de nossa natureza subserviente, que os apóstolos não puderam guerrear. Este aspecto estava tão arraigado no inconsciente coletivo de qualquer sociedade, cultura ou religião, que seria um esforço inútil tentar mitigá-lo ou extirpá-lo do cristianismo.

Assim sendo, o melhor a se fazer era transformar o inevitável em uma realidade controlável. A partir desta compreensão apostólica e mais precisamente paulina, surge o estabelecimento de critérios para que alguém se tornasse um líder regional (pastor, presbítero, bispo ou guia) ou diácono (1 Tm 3:1-13; Tt 1:5-9). Esta foi a solução encontrada. Aparentemente, não havia outra tão viável. Por isto, o modelo da Igreja que estava na agenda de Jesus é tão utópico em relação à distopia humana.

E como seria este modelo? A resposta é simplória: os membros locais de uma igreja se reuniriam periodicamente, invocando para aqueles encontros a condução do Pastor, Jesus. Esta condução se daria através de sua Palavra, em que, alternadamente, cada um dos membros tivesse a oportunidade de ser um liturgista, iniciando e continuando a reunião conduzida por Cristo, ao passo que os dons se manifestassem naturalmente, quando todos tivessem a condição e o direito de expor e compartilhar suas experiências à luz das Escrituras.
  
Como todos na nova aliança, são profetas em potencial, todos têm o privilégio e a anuência do Pastor para edificar, exortar e consolar a todos (1 Co 14:3). Não seria necessário consagrar alguém para esta tarefa específica. Ela está inerentemente ligada à conversão e maturação dos crentes, que deveriam ser formados em direção a este conjunto de práticas, para se submeterem apenas à voz Daquele que decidiu estar em roda onde dois ou três estiverem. Esta é a Igreja, a távola redonda que o próprio Rei desenhou em sua agenda, mas que devido à nossa natureza, nem sequer saiu do papel.

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