Eu, evangélico?

É recente. Fui batizado em 2008 na Igreja Presbiteriana do Brasil. Não faz nem uma década. Mas de lá pra cá, começou em mim um processo de lucidez existencial - e por que não espiritual? - que jamais havia experimentado antes. Então, passei a estudar a propedêutica da teologia, inteirar-me de literaturas multi-teológicas, frequentar círculos divergentes dos arraiais reformados, debater assuntos parcialmente inquestionáveis e tecer a gênese do meu amor por escrever sobre tudo a partir de uma perspectiva cristã. Isto abre a mente. Dá asas ao espírito. Amadurece a idiossincrasia pessoal e a cosmovisão de reino.

Foi, então, que percebi, com a surpresa de uma criança honesta na fé, que há algo muito errado com o universo evangélico brasileiro. A realidade é que a maior parte do que é produzido ou introduzido aqui, com um caráter religioso cristão, manifesta-se com uma roupagem colorida por dois elementos amplamente negativos: a mistificação do trivial e a ressurreição do que já está consumado. Já escrevi sobre isto em outros textos como "O catolicismo histórico, o valdemirismo brasileiro e a Síndrome de Tomé", "Os brincos da Coruja" e "Dossiê da história cristã". Todavia, gostaria que você me desse mais uma oportunidade de reavaliar estes fatos.

Parece que, quando as coisas começam a tomar rumo, sempre surgem cardos e abrolhos pra desfazerem o progresso iniciado. Tivemos o mover do G12, da visão celular, da descoberta do Benny Hinn, da ascensão de Edir Macedo (o mentor de "Erre Erre" Soares e Valdemiro Santiago), todos inspirados por Kenneth Hagin, T. L. Osborne & Cia. O neopentecostalismo, cujo fio condutor é a Teologia da Prosperidade e Cura, se dilatou e com ele um conceito equivocadíssimo de avivamento se espalhou pelos salãozinhos evangélicos. "'Salãozinhos' não! Mais respeito! Construímos a Cidade MUNDIAL e o terceiro Templo de Salomão na cidade de São Paulo." Coitado de São Paulo. Deve estar aos berros lá em cima.

Mas voltemos aos dois elementos supracitados. O primeiro é o que guia os cultos, as reuniões, a formação da liderança, o poder concedido a ela, a hierarquia eclesiástica, os sermões, as liturgias e as músicas do movimento evangélico brasileiro. Quando o G12 começou na Colômbia em 1983, ele não tinha todas as conotações que os evangélicos [leia-se: neopentecostais] lhe atribuíram aqui no Brasil: batalha espiritual, quebra de maldições, atos proféticos, cura interior, regressão, hipnose, fogueira santa etc. Todos estes ingredientes foram incrementados pelos bruxos cristãos de nossa geração. Não lhes basta o trivial, o comum, a singeleza da simplicidade. É necessário mistificar o padrão para lhe dar ares de espiritualidade.

Lembra-se da unção do leão de Ana Paula Valadão? Do copo de água em cima da televisão pela I.U.R.D? Dos lenços "Sê tu uma Bênção" do Valdemiro? Já ouviu falar em correntes, novos apóstolos, maldições hereditárias? Das loucuras do "Bispo" Átila Brandão que chama o arcanjo Gabriel de Gabi? Das maluquices da Igreja Quadrangular Brasil afora? Lembro-me que, aqui perto de casa, a igreja que citei por último proibiu os membros de tomar Coca-Cola; depois, desproibiram de tomar o refrigerante e baixaram um novo regulamento que definia a roupa com a qual os fiéis deveriam ir aos cultos: pano de saco. E é neste desequilíbrio que o cenário vai se descortinando.

Mas ainda não acabou. O outro elemento do qual falamos é a ressurreição do que faleceu em Cristo. Além de mistificar o simplório, eles querem vivificar a cultura judaica, suas tradições, a lei mosaica, Israel etc. Querem se vestir como os hebreus, trazer a água do rio Jordão ou serem batizados lá, engarrafar torrões de terra da Terra "Santa". Exatamente como o João Alexandre melodificou: "Reconstruindo o que Jesus derrubou. Recosturando o véu que a cruz já rasgou. Ressuscitando a lei, pisando na graça, negociando com Deus! No SHOW DA FÉ, milagre é tão natural, que até pregar com a mesma voz é normal. Nesse Evangeliquês UNIVERSAL, se apossando dos céus. Estão DISTANTE DO TRONO, caçadores de Deus ao som de um Shofar. E mais um ídolo importado dita as regras pra nos escravizar. É proibido pensar!"

E não é isto que o MACEDOzedeque acabou de fazer na terra da garoa? Dando vida ao que o Cristo assassinou quando foi assassinado na cruz? Como disse Paulo, não me envergonho do Evangelho, porém, tenho uma imensurável aflição e constrangimento quando sou confundido com um evangélico. É que o Evangelho e os evangélicos não se misturam, pelo menos ainda não. E se lá no panteão de apostasias deles, é proibido pensar, eu jamais quero estar incluído neste rótulo. Portanto, não me insulte. Não profane o meu nome. Não me detenha na roda destes escarnecedores. E, sobretudo, não me conte entre eles quando o censo passar.

O justo viverá pela fé - Será?

Tornou-se um consenso tácito entre a população protestante que a ratificação que Paulo faz do texto de Habacuque 2:4 em Romanos 1:17 refere-se a uma suposta experiência cristã que se manifesta, única e exclusivamente, pela fé, independente da relação com aquilo que a Bíblia denomina de "boas obras". Esta acepção, no entanto, só foi popularizada após o manejo deste versículo pelo monge agostiniano Martinho Lutero, que em 1517 teceu 95 argumentos contra a pregação e petição de indulgências por parte da Igreja Católica, elegendo a afirmação bíblica "O justo viverá pela fé" como o fio condutor de seus protestos.

Acredito que, embora o ato de apropriar-se deste texto para exaltar a doutrina da salvação pela fé seja totalmente correto e plausível, há uma ampliação branda deste sentido - muitas vezes imperceptível - que se estende à sua transformação em um álibi para se negligenciar a necessidade das obras, afinal, "o justo viverá pela fé". Entretanto, se avaliarmos o versículo de Rm 1:17 com um crivo hermenêutico minimamente razoável, ou seja, dissecando partes desta epístola paulina, descobriremos que o termo "justo" não se sintetiza em "crente" ou "cristão" apenas, mas que se dilata até um significado mais específico.

Duvida? Vamos lá então. A princípio, vire a primeira página da carta aos Romanos e localize o capítulo 2, verso de número 13. Diz assim: "Porque os simples ouvidores da lei não são justos diante de Deus, mas os que praticam a lei hão de ser justificados." O apóstolo dos gentios parece começar dando norte à sua concepção de quem, de fato, viverá pela fé. No mesmo capítulo ele já havia asseverado: "a vida eterna aos que, perseverando em fazer o bem,..." (v. 7); "glória, porém, e honra, e paz a todo aquele que pratica o bem..." (v. 10). Agora ele, categoricamente, afirma que o justo - ou o que será justificado - é aquele que PRATICA a lei.

Por conseguinte, parafraseando o versículo chave de nossa reflexão, poderemos transcrevê-lo da seguinte maneira: "O que pratica a lei viverá pela fé." Mas o que seria esta lei? A legislação de 613 artigos de Moisés? Só os dez mandamentos? Bem, caminhemos mais um pouco nos conceitos de Paulo. Abra em Romanos 13:8-10 e leia o textículo na íntegra. Agora, você já sabe o que é "cumprir a lei" na cosmovisão de Paulo, não é mesmo? É executar o amor; é amar o próximo como a ti mesmo; é a caridade; é fazer as boas obras. Assim sendo, temos o problema devidamente equacionado: "o justo viverá pela fé" é o mesmo que "o que cumpre a lei viverá pela fé", que, por sua vez, é o mesmo que "o que pratica a caridade viverá pela fé".

Talvez você não goste muito da palavra "caridade", porque as teologias protestantes preferem segregar esta expressão como um termo católico ou espírita. Todavia, tal palavra é, nada mais nada menos, um sinônimo do amor aplicado à vida alheia. Não há nada de herético nela. Mas voltemos ao nosso alvo. Vamos investigar se Jesus concorda com o valor que Paulo atribui ao adjetivo "justo". Em Mateus 25:31-46, o Cristo disserta a respeito das ovelhas e dos cabritos. Os primeiros deram de comer e de beber, hospedaram, vestiram e visitaram uns aos outros. Os últimos se omitiram com relação a estas práticas. Estes irão para o castigo eterno. As ovelhas, "os justos", porém, para a vida eterna (v. 46).

Se você reler o diálogo de Jesus com o jovem rico, perceberá que o mestre quer torná-lo justo antes dele o seguir: "Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vende os teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me [ou melhor: depois você viverá pela fé]. Parece que há duas justificações navegando pelas páginas do Novo Testamento: uma é salvífica, repentina e concede a fé salvadora; a outra é contínua, progressiva e desenvolvedora desta fé através das obras. Por que você acha que Paulo e Tiago parecem discordar sobre este tema? E ainda sobre a própria justificação de Abraão? Ora, porque eles estavam falando de justificações diferentes (Gl 3:6-14; Tg 2:21-25).

Contudo, que fique claro que Paulo se apoderou da justificação pelas obras, trabalhada mais por Tiago, a fim de consolidar sua crença de que o indivíduo que executar atos de piedade para com o seu próximo, tornando-se, para tanto, um "justo", acabará, de fato, vivendo pela fé que solicitou as suas boas obras. Do contrário, se algum crente desejar apartar-se desta responsabilidade, saiba que entre a fé, a esperança e o amor, este último é o mais importante (1 Co 13:13). Sobretudo, respondendo a pergunta do título, o justo viverá sim pela fé. A diferença é que ser justo, neste caso, não significa ter fé, até porque é impossível acreditar em Deus, que não se pode ver, sem creditar amor ao homem, em quem não se precisa crer.