Eu

As duas letras unidas e sequenciais que formam o título deste texto, dizem respeito ao maior homicida da espiritualidade que habita em cada um de nós. O “eu” de mim mesmo, é quem sempre me impediu de compreender a ironia do Evangelho, ou seja, o discurso de que devo viver em favor dos outros, conforme a mente alheia, me importando, sobretudo, com as convicções dos “eus” que estão fora de mim.

Testemunho é uma palavra banalizada pela ideia de que este é apenas um sinônimo do compartilhamento de experiências espirituais. Testemunho na verdade, é, de fato, um sacrifício ascético do crente, que pode literalmente agir de forma lícita em alguma ocasião, mas que assim não procede, pelo fato da consciência de que sua ação pode se tornar um escândalo aos olhos de quem a presenciar, seja um irmão ou não. Não foi por outro motivo, que Paulo, um artesão de vidas e de tendas, resumiu tal assertiva: “Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém.” (1 Co 10:23)

O Evangelho está cheio destas coisas. Jesus substituiu o “pode” e o “não pode” pelo “depende”. Ele não trouxe uma nova lei fria, como a que transformou o antigo conserto em uma aliança com defeito (Hb 8:7). Ele concedeu uma regalia a todos os cristãos, algo de que os judeus nunca desfrutaram: o direito a uma avaliação racional e espiritual, para definir o próprio comportamento em situações simples ou complexas. Daí, toda ação pública dos crentes, precisa ser balanceada junto a conceitos culturais, sociais, morais e religiosos de um determinado lugar, durante determinado tempo. Isto é a ética do Reino, que julga todas as coisas, retende o que é bom, e priva o outro de toda a sorte de confusão ideológica.

A maior prova do amor ao próximo consiste nesta abstinência. Deixar de ingerir álcool, de fazer tatuagem, de ir a algumas festas, de usar certas roupas, de ouvir determinadas músicas, são atitudes maduras de alguém que avalia o seu contexto e o texto sagrado. Nenhuma mulher no Brasil precisa entregar seus brincos a Jacó (Gn 35:4); nenhum homem em Israel tem de tirar seu Kipá para orar a Deus (1 Co 11:4). Os apóstolos ordenaram que ninguém mais fosse circuncidado (At 15:5-11), mas logo em seguida, Paulo circuncidou a Timóteo (At 16:3). Incoerente? Não, coerentíssimo! O apóstolo dos gentios estava criando um nexo com aquilo que ele havia de escrever aos Coríntios: “Ninguém busque o seu próprio interesse e sim o de outro.” (1 Co 10:23,33). Paulo procedera daquela maneira, por causa das opiniões dos judeus.

Este é o espírito da coisa, o Espírito do Evangelho. Porém, infelizmente, ainda existe uma enorme quantidade de cristãos contaminados pelo que chamamos de Lairribeirismo, que diz: “O que as pessoas pensam de você, não é problema seu, é problema delas.” (Lair Ribeiro). Este individualismo prático consolida o egoísmo e nos torna participantes de direitos que não existem, como o de viver sem se importar, e como o de se importar sem se abster. Você deve prestar contas a quem tem a mente fraca. Você deve acolher o legalista e o liberal com sabedoria, sem culpá-los pelo extremismo adotado. Já dizia o velho Batman, o zelote de Gotham: “Não é quem eu sou por dentro, mas sim o que eu faço, é que me define.” Definitivamente, você é o que as pessoas dizem por aí.

Entre Joios e Trigos

Servir ou ser visto é a maior confusão dos crentes na Igreja do novo milênio. Não se consegue mais compreender o paradoxo de Jesus, que diz ser o maior, aquele que se dispõe a servir. Lavar os pés uns dos outros com o melhor perfume, não perfuma mais os nossos interesses. A igreja se tornou um orfanato de irmãos desconhecidos, reunidos por uma fraternidade egoísta.

Servir implica em um relacionamento de humildade, de um auto-posicionamento abaixo, e simultaneamente, acima de quem é servido, objetivando suprir necessidades, firmar certezas e alimentar a fé alheia, pois assim como os braços não andam e os pés não pegam, todos os membros do corpo de Cristo também são interdependentes. Ser visto é uma prática de individualização espiritual, de um membro que quer auto-existir fora do corpo, que pretende se edificar, se engrandecer, e ter comunhão apenas com os títulos, ministérios, cargos, mídias, e demais fontes de êxito social perante o mundo evangélico.

A maior diferença entre o Joio e o Trigo consiste nesta disparidade. Paulo não havia lido o Livro da Vida, mas através de frutos de serviço, acabou por concluir que os nomes de seus companheiros e colaboradores, lá estavam escritos (Fp 4:3). João não elegeu nenhuma Igreja para a salvação, porém diante da mesma conclusão de Paulo, declarou eleita a destinatária de sua segunda carta (2 Jo 1:1,13; 3 Jo 9). Não há outro elo ou sinal na plantação que nos faça discriminar estes dois elementos, a não ser o produto de suas práticas e convicções em relação aos outros.
 
Quando falamos em outros, nos referimos principalmente aos da família da fé (Gl 6:10), mas de forma alguma, podemos excluir do rol de nossos atos de piedade, os que ainda não fazem parte deste escopo. Detesto ouvir o discurso aparentemente intelectual de cristãos que se dizem socializados, e que portanto, não dão esmolas e nem ajudam física ou economicamente moradores de rua, “indigentes” e pobres em geral, com a desculpa desumana de que se assim procederem, irão inibir a livre iniciativa de trabalho ou contribuir com a manutenção de realidades criminosas. Sugiro a estes sociólogos da Igreja, que se candidatem à Presidência da República, que sejam eleitos e que mudem todo o sistema. Mas enquanto isto não acontece, o que existe é o pobre, e Jesus não disse que este precisa de avaliação sociológica, mas sim de tratamento, doação e misericórdia. (Mt 25: 35-40)
 
Não estou argumentando em favor de uma alienação cega, no sentido de que não se deve avaliar os receptores de tais “esmolas”, mas sim em detrimento de um justo serviço a quem precisa de roupas para vestir e de alimentos para existir. Isto é, em última instância, a essência da Missão Integral. No entanto, este tipo de pensamento "socializado" não é o pior, pois existem alguns crentes que não entendem, mas até atendem ao princípio de se doar, e conseguem, mesmo que em colapsos momentâneos, servir como o bom Samaritano. A diferença é, que posteriormente a este ato, há sempre um sensacionalismo estratégico da parte destes "servos", que tocam trombetas e pedem aplausos a si mesmos, fazendo com que suas obrigações se tornem um favor, e com que suas ações se tornem fotos, vídeos e propagandas de vida com Deus. Isto gera consequentemente uma invalidação antagônica do valor do serviço realizado, caracterizando mais uma vez, a postura de um Joio.
 
Nenhuma árvore produz frutos para si mesma, e muito menos a sua sombra é para o seu próprio descanso. Jesus quer que, sobretudo, comunguemos erros e desgraças; quer que sejamos um corpo, onde a boca assopra a ferida do braço, e onde a mão massageia as dores da perna. Não há corpo sem este comportamento de auto-estima. Ter dons espirituais é ter para os outros; é ter a posse, mas não o direito; é ter a causa, mas não o efeito. As boas obras e não só as obras, simbolizam a existência de uma boa árvore. As boas árvores e não só as árvores, produzem frutos dignos de sua essência. Colher o Trigo e queimar o Joio não é tarefa nossa, mas conhecê-los e discriminá-los é o mínimo para sermos ou não irmãos.