Nota falsa

Pouquíssimos cidadãos agregam valor ao conhecimento da diferença entre uma nota verdadeira e uma falsa. O papel-moeda utilizado em muitos países do mundo, vez ou outra, é alvo de diversas falsificações de quadrilhas especializadas. A aparência genérica, o tamanho, as cores e o material são os mesmos de uma nota emitida oficialmente. No entanto, há alguns sinais específicos implantados em sua versão verídica, que apenas a mesma pode conter, e que nenhuma facção criminosa pode usurpar. Basta a todos o interesse de conhecer estas marcas originais. Com o Evangelho de Jesus, também é assim. Desde tempos imemoriais, há grupos que se levantam em favor de pseudoverdades semelhantes às assertivas que Cristo pregou. 

Assim, creio que há dois motivos pelos quais as heresias surgem de forma progressiva e trivial em alguns indivíduos. O primeiro se trata de uma vontade consciente e pragmática que faz com que um lobo ou uma alcateia crie outro sistema aparentemente coeso de crenças e de vida cristã, objetivando adquirir ganhos financeiros, controle emocional, superestimação pessoal, dentre outros prazeres. Sobre estes, podemos sugerir um paradoxo, citando suas marcas, as quais não se encontram nas notas verdadeiras. E são elas: desejo frenético por quantidade de adeptos; ênfase sensacionalista em milagres; surgimento explosivo e midiático; “teologias” de escambo entre dízimos e bênçãos; sermões extensos baseados em experiências pessoais.

Por ora, a respeito destes estelionatários, não me aterei as suas cobiças e jactâncias, pois tais dissabores são frutos de um coração perverso, e deste coração só o Espírito pode tratar. Limito-me aqui a dissertar apenas sobre a segunda e mais corriqueira causa dos desatinos doutrinários. Falo do despreparo ao se interpretar as Escrituras, "a mãe de todas as heresias", como disse o grande apologeta Martinho Lutero. Não sou a favor de uma hermenêutica fatalista que estabelece o grau dos óculos com o qual devemos ler a Bíblia. Mas sou militante por princípios que nos norteiam ao conceito da “Bíblia pela Bíblia” em paralelo com a leitura imparcial de documentos seculares referentes aos variados contextos bíblicos. 

Para citar um exemplo deste modelo de leitura, digo, a priori, que o texto precisa ser lido de forma literal, exceto quando o próprio ou outro texto invalide esta premissa. A lonjura entre interpretações literais e alegóricas é, historicamente, o fio condutor dos conflitos entre a enferma e a sã doutrina. E é com esta distância que devemos ter uma cautela piedosa, para falar ou nos calar, caminhando conforme a melodia do texto. Foram inúmeras as vezes com as quais me deparei frente a discursos contundentes do evangelho, porém, entranhados com conjecturas sobre anjos, céu, inferno, sonhos e outras temáticas bíblicas, que saíram do papel e tomaram formas estranhas na mente de pregadores incautos. “Dê asas a sua imaginação” não é um bom conselho no que concerne ao púlpito e a literatura cristã.

Outra direção que penso ser bastante desprezada por aqueles que se dispõem a dissecar o texto bíblico, é o contato com as línguas originais em que o texto foi escrito e o domínio da norma culta do idioma em que se lê a sua tradução. O descaso para com este conhecimento técnico, torna inevitável o surgimento de visões teológicas distorcidas e esdrúxulas. Foi o caso do pedreiro e “pastor” Justino de Oliveira, de Serra, na grande Vitória (ES), que começou a ensinar a bigamia por ler na Bíblia o termo “adultera” em vez “adúltera”, em Oséias 3:1. Reconheço que adquirir um bom acervo polilinguístico não é tarefa fácil, mas com os instrumentos que nos são acessíveis atualmente, não temos do que murmurar. Ademais, falo de domínio básico, não de know-how na área.

Admito também que hoje é complexo determinar a totalidade da sã doutrina sem altercações, posto que não temos nenhum órgão da revelação ao nosso dispor, como os da igreja primitiva tinham os apóstolos. Mesmo havendo comunidades cristãs que ainda podem ser consideradas sadias, equilibradas e maduras, há sempre de se existir, entre elas, discrepâncias categóricas do ponto de vista ortodoxo. Isto é natural, pois há uma parcialidade perene em nossa observação. O problema que discuto aqui é outro, ou seja, refere-se a distanciamentos extremistas daquilo que o Novo Testamento propõe e de como o mesmo deve ser lido. Escatologia, lei mosaica, dízimos e ofertas, dons espirituais, sacramentos e outros mais, são os assuntos preferidos dos hereges que “pretendendo passar por mestres da lei, não compreendem nem o que dizem, nem os assuntos sobre os quais fazem ousadas asseverações.” (1 Tm 1:7)

Neste espírito apologético, concluo advertindo a todos que procurem existir à imagem e semelhança dos de Bereia, que estabeleciam paralelos diários entre os discursos e as Escrituras (At 17:11). Fique vigilante sob a égide do evangelho. Não o ultrapasse. Não o violente. Assim, será mais simples identificar em meio a multidão as vozes que destoam do que se pode considerar a nossa confissão de fé. Nossa atitude para com estas notas falsas deve-se pautar na intercessão para que se convertam ao bom caminho, e não em uma inquisição precipitada que os condene ao inferno. Separar o joio do trigo não é tarefa nossa. Contudo, importa que preguemos a existência de "somente um corpo, um Espírito, uma só esperança, um só Senhor, uma só fé, um só batismo e um só Deus e Pai de todos.” (Ef 4:4-6). O que se perder ao longe desta declaração, deve ser considerado anátema.

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