O QUE, AFINAL, É SER UM TEÓLOGO LIBERAL?


É nitidamente perceptível como tem se enveredado, por entre as capelas protestantes, a persistente atribuição de uma alcunha pejorativíssima àqueles que se fincam em cosmovisões mais flexíveis sobre os objetos de fé cristãos. A coisa está do seguinte modo: se alguém se ergue da rigidez petrificante de sua estrutura eclesiástica e se dispõe a propor, sob a égide da livre interpretação, um novo horizonte a respeito de dogmas, ritos e tabus acimentados na idiossincrasia histórico-cristã convencional, então, pronto: o sujeito é um liberal e “não se fala mais nisto”.

Se, portanto, tua teologia não é exatamente a consubstanciada na Reforma, és um liberal; se, ainda que verossímeis, tuas ideias são tão impopulares quanto desafiadoras, és um liberal; se questionas, provocas ou sacodes as doutrinas consideradas “indebatíveis, concretas e irremovíveis”, i’m sorry my friend, tu és um liberal no sentido mais pós-moderno do termo – e ponto final.

Ocorre, no entanto, e justamente por haver uma troca sutil do conceito oficial pelo pós-moderno, um grave disparate semântico neste ultraje que tanto tem tomado fôlego nas catedrais tradicionalistas: o fato dos conservadores atuais se apoderarem de um vocábulo exclusivo de um instante teológico pretérito, emprestando-lhe um significado contemporâneo estranho às variáveis que levaram os conservadores passados a costurarem sua definição original, desvencilha a relevância histórica do termo de seu emprego adequado, permitindo que os leigos mais oligofrênicos maritaqueiem cada vez mais a estupidez de que tudo, exceto o que ecoa da garganta de seus pastores, é liberalismo.

Mas insisto que esta taxação frenética dos quadrados “guardiões da sã doutrina” está viciada e tende a bipolarizar o confronto teológico inteiro, concebendo-o entre eles, os mocinhos ortodoxos que preservam as verdades bíblicas em seus castelos de marfim, e a facção dos teólogos restantes, os vilões libertinos que maquinam a relativização e reinterpretação subversiva dos preceitos cristãos. Por estas e não por outras razões, presto-me aqui, a partir deste instante, a responder com, acuracidade técnica, o que, afinal, foi ser um teólogo liberal?

Participar do liberalismo teológico, a rigor, consistiu em negar, sobretudo, a paranormalidade e a mística do texto bíblico, pulverizando, por exemplo, a compreensão da literalidade de Adão e Eva e do evento da queda, além da factualidade das ocorrências sobrenaturais do Velho Testamento, suas teofanias, bem como os milagres dos Evangelhos, o nascimento virginal e a ressurreição, ascensão e segunda vinda de Cristo. Tal corrente, portanto, se ocupava de garimpar o conteúdo das Escrituras a fim de identificar e superestimar seu ouro historiográfico, tangível e experimentável, desprezando, por outro lado, seu teor espiritual, metafísico e transcendente.

Somadas a esta posição categoricamente materialista, entrava na dança ideias que repudiavam absolutos como o de que “só Cristo salva” ou mesmo o de que “a Bíblia é a revelação de Deus.” O livro “A busca do Jesus histórico” de Albert Schweitzer, publicado em 1906, é a obra que, pelo substrato de seu título, mais protagoniza a ideologia-mãe da escola teológica de pensamento liberal, ou seja, a descaracterização do Jesus da religião e de todos os adornos espiritualistas que o cristianismo costurou para o orbitar. O liberalismo de Schleiermecher, Ritschl e Troeschl (seus personagens pivotais) teve como seu precedente e maior trampolim o próprio Iluminismo, e agasalhou, concomitante e antagonicamente, o racionalismo de Descartes, Spinoza e Leibniz, e o empirismo de Locke, Berkeley e Hume.

Podemos asseverar, portanto, sem aquela educaçãozinha covarde do “politicamente correto”, que os liberais do século XVIII foram hereges no sentido mais gritante da palavra, porém não porque discordaram das interpretações bíblicas mais clássicas de sua geração, mas sim porque divergiram ativamente das postulações autoexplicativas, ultraevidentes e arquimilenares que preenchem a textualidade das Escrituras e que, por convenção espontânea, integram a redação do Credo Apostólico miniconfissão dos “apóstolos” que foi reiterada pelos movimentos cristãos protagonistas dos milênios que até aqui se arrastaram.

Aliás, a verdadeira abstração de “heresia” que deveria invadir o vernáculo eclesiástico de todos os tempos é precisamente a desta concepção, isto é, heresia é o que destoa dos itens que alcançaram um nível exato de inquestionabilidade tal como supracitado e não aquilo que diverge de todos os elementos que o establishment cristão de uma seção da história julga como inalienáveis. Degusto, a este respeito, um dos ditos do teólogo luterano alemão Peter Meiderlin: “No essencial: unidade; nas demais coisas: liberdade; e acima de tudo: caridade.”

São, para tanto, interpretações de segunda importância (“as demais coisas” de que Peter fala) aquelas matérias que não foram trabalhadas minimamente por Cristo ou que não tiveram a devida atenção dos apóstolos ou que, na hipótese de terem sido razoavelmente exploradas, não produziram a clareza necessária para uma leitura investigativa futura – como é esta da qual somos reféns. Sobre tais análises, pesa, antes de tudo, a doutrina-primeira do “livre exame”, ideal tão cobiçado pelos reformadores e, ao mesmo tempo, tão retrocedido pelos seus epígonos.

Destarte, sugerir que uma senhora periodicamente espancada por seu marido se divorcie, ancorando-se não na teologia verbal de Jesus, mas em sua maior lição gestual, que é aquela que nos ensina que a vida vale mais do que qualquer princípio hermético, não é ser liberal; afirmar que a Bíblia é um livro divino com sotaque humano e que, perscrutando-a tecnicamente, percebe-se que Deus permitiu que ela carregasse resquícios da falibilidade de seus porta-vozes, não é ser liberal; insistir que o ideal do dízimo e sua referência caducaram peremptoriamente no advento da Nova Aliança e que agora a relação dinheiro-igreja deve ser comandada pelo resultado do choque entre possibilidade e generosidade, não é ser liberal; assumir, sobretudo, que igreja não é templo, que pastor não é sacerdote, que o domingo não substitui o sábado e que beber, dançar e jogar não constituem nenhum mal em si, não é – eu posso lhe assegurar – ser um liberal.


Contudo, sim, existem liberais hoje como à moda antiga e, a meu ver, todos devem ser encarados com o olhar desaprovador que merecem, sem prejuízo, é óbvio, de serem desacreditados publicamente. E se alguém se atrever, um dia, a me perguntar se sou conservador, saiba que minha resposta será sempre positiva, desde que a noção deste rótulo não consista em manter intocáveis tudo aquilo que a igreja pensa hoje, mas sim em fazer isto com o que ela, em suas épocas mais áureas e à vista de seus teólogos mais brilhantes, pensou de comum acordo.

Tome a sua cruz

Se, por um momento, olharmos para a história da fé judaico-cristã, nos depararemos, sem enormes esforços, com as vidas dos grandes pivôs do universo bíblico tatuadas com os mais terríveis sinais do sofrimento humano. Assim foi com a maior parte dos patriarcas, profetas, reis, juízes e sacerdotes da Antiga Aliança, não nos esquecendo, é óbvio, daqueles que se fizeram mártires, apóstolos ou não, nos primeiros séculos do Anno Domini.

A Igreja suou e sangrou demais por tanta perseguição no começo da era cristã. Tal era o tamanho da marcação, que os cristãos romanos foram acusados da autoria do incêndio de Roma em 64 A.D e até por desordens climáticas como as enchentes do rio Tibre e as secas do Nilo, sem evocar à memória, é claro, as atrocidades de que eram alvos por meio de boatos estratégicos, isto é, que adoravam um deus com cabeça de asno, que praticavam canibalismo, incesto etc. Tudo isto pode ser verificado, com maior afinco, no livro “Apologias”, que Justino escreveu para defender seus correligionários.

Até aqui, tudo bem. Mas pensemos: e, agora, no mundo moderno, onde as coisas melhoraram consideravelmente? Ou seja, que não há mais, como há milênios atrás, a gigantesca expressão de um terror bárbaro, perene e quase onipresente sobre os que professam a fé em Cristo? O que replicar à Jesus hoje quando ele nos convocar a tomar nossa cruz e o seguir? Sublinho esta questão porque o mundo contemporâneo venceu, pelo menos em quase toda a sua geografia, a tirania, a escravidão, a intolerância religiosa e tantas outras invirtudes afins.

Por efeito, com o advento hegemônico da legitimidade dos Direitos Humanos no planeta, atualmente só é possível encontrar resquícios de totalitarismo assumido e de nações sucateadas por governos primitivos, como, por exemplo, o Estado Islâmico e outras organizações conterrâneas, a Coreia do Norte e alguns países miseráveis do continente africano. Esta realidade nos faz concluir que se aquele chamado de Jesus foi universal e atemporal, outro significado daquela “cruz” deve imperar para nós, os crentes filhos da democracia.

De uma coisa sabemos sem espaço pra dúvidas: “De fato, todos os que desejam viver piedosamente em Cristo Jesus, serão perseguidos” (2 Tm 3:12). Entretanto, a perseguição não está intrinsecamente condicionada ao âmbito físico ou fisiológico. Aliás, ela pode, até com mais poder e fugacidade, manifestar-se para alguém na rejeição perante grupos cujo ingresso é interessante, diante de piadas vexatórias que humilham, através de isolamentos por pessoas avessas a seus valores, por meio de rótulos provenientes de preconceitos diversos, dentre um conjunto de outras ocasiões opressoras, que desnutrem a autoestima e o bem-estar, abatendo a alma a ponto de deixá-la aos auspícios da depressão.

“Tomar a sua cruz e seguir a Cristo”, portanto, além de significar ser espancado, cuspido, torturado ou ceifado em nome dele, é também admitir ser virgem com muito orgulho quando a galera da turma perguntar; é dizer, com largo sorriso, que não está entre suas práticas trair sua companheira; é, com firmeza, repreender o hábito de seus colegas de colar na prova da faculdade; é rejeitar, e com cara feia, o cigarrinho de Maconha que seus vizinhos insistem em lhe oferecer; é se recusar a participar das rodinhas de pornô-sap nos intervalos do trabalho; é não ser complacente com todos os seus parentes que aderiram à modinha “SKY gato”. Faça tudo isto com seriedade e fé e depois me diga se você não estará se sentindo abandonado e, ao mesmo tempo, atacado pelos que te cercam.

Um adendo mais que vital: não há nada que recorrermos, portanto, ao legalismo evangélico para satisfazermos a condição de “sofrer por Cristo”. Os currais pentecostais deste Brasil, desde os mais clássicos aos mais extravagantes, sempre imaginaram, ainda que imperceptivelmente, que, na ausência de um “status quo” de perseguição direta e oficial à igreja, seria preciso se proibir de tudo um pouco, a fim de produzir negações sacrificiais a elementos que, por eles mesmos, foram elevados ao degrau de impuros, almejando com isto agradar a um Deus cujo apego a seus filhos se dá na medida em que estes se desapegam das coisas materiais e estéticas deste mundo e sofrem por isto.


Ademais, ainda parece-me que não somente a verdadeira fé em Jesus incomoda muita gente e provoca confrontos morais incontroláveis dentro das pessoas, como também a própria esperança de que o messias ainda virá e a crença no Deus de Israel, ou seja, a fé do Judaísmo Ortodoxo, é escândalo pros cidadãos desta Terra, haja vista que, só por crerem no que criam, seis milhões e seiscentos mil judeus foram vítimas do Holocausto nazista. Não deixemos de nos lembrar aqui dos missionários cristãos que ainda são perseguidos à moda antiga em nações cuja ditadura ainda é a forma de governo vigente. Sobretudo, importa saber que, quer seja no corpo ou na mente, como bem disse Victor Frankl, “se você tem um porquê, então poderá suportar todos os comos”.

O Brasil estupidificando o Brasil

Deliciando-me com “A República”, uma obra irrepreensível escrita por Platão, aprendi que o termo “arte” para a semântica grega consistia, o que seria para esta geração, numa vulgarização de seu sentido atual, posto que lá na Grécia eles estendiam sua definição a todos os ofícios possíveis à época. Assim, a medicina, a ginástica, a carpintaria, a navegação e tutti quanti eram artes em sua concepção mais digna.

E sejamos íntegros: quando uma cultura qualquer categoriza seus elementos artísticos como “dignos”, a referência imediata que um cérebro adulto deve fazer a respeito é com a capacidade que estes elementos têm de ser apreciados como belo, coerente, provocativo, impactante ou inovador (estes três últimos, de maneira positiva, é claro), virtudes estas que jamais estiveram presentes nos rebolados, encochadas e letras do funk brasileiro.

E não venha me contestar papagaiando que isto é questão de gosto. “Gosto”, meu amigo, é a manifestação da liberdade que a mente tem de preferir uma coisa em detrimento de outra. Você pode até gostar, como um cão adora lamber o próprio saco, de toda a expressão do funk, mas quando confundir isto com arte, estará se enveredando na mesma tolice que uma criança comete quando ao ver um saco de boxe, logo pensa que se trata de um bexiga gigante de mortadela.

Trago este assunto à baila por ter sido surpreendido – e não sei como isto ainda é possível – pelo teor progressista e desconstrutivista (parece até um paradoxo) que a prova do último ENADE, o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes, aplicado a alunos de curso superior, revelou-me em seu conteúdo. Como se já não fosse absurdo suficiente preencher até o talo uma prova oficial do MEC com ideologia de gênero e de raça e até com uma flexibilização no trato com pichações urbanas, a banca do INEP pediu, na cara dura, uma dissertação que concebesse o funk como patrimônio cultural deste país.

Foi instantâneo: tão logo vi aquela proposta de redação, recordei-me das palavras carinhosas do Olavo: “A mentalidade desta gente faria os porcos vomitarem se lhes fosse servida no coxo.” Com “gente”, o grande Olavo de Carvalho quis se referir àqueles sujeitos que, neste caso, ignorando o fato inconteste de que os funkeiros em atividade fazem apologia descarada ao sexo sem vínculo e sem proteção, às drogas (lícitas ou ilícitas) para todos os paladares e olfatos e à legitimação de crimes cuja a experiência da favela os torna inculpáveis, eles planejam elevar este estilo musical à qualidade etérea de produção educativa.

Ora, pra quê você pensa que se presta a arte senão para extrair da realidade ou da imaginação objetos abstratos, que somente sozinhos, podem ser eficazmente contemplados pela emoção e compreendidos pela razão, a fim de que estas duas esferas do cérebro sejam educadas para o seu progresso? Se você não consegue aprender nada com o Djavan, se um seriado de J. J. Abrams, um quadro de Da Vinci, uma estátua de Aleijadinho ou os movimentos de uma bailarina russa não te sacodem, não te arrepiam e não lhe ensinam nada sobre viver, ou você é uma cadáver que ainda respira ou, na melhor das hipóteses, é só um idiota sem precedentes na humanidade.

O funk é apenas mais umas das abrasileirações que alguns civis malandros desta nação perpetraram a partir da importação de itens de cultura estrangeira (geralmente a americana). Já imaginou se no além para onde o lendário James Brown partiu, fosse lhe apresentado o “funk ostentação” como a sucessão latina de seu trabalho em vida? Seria uma reação agonizante pra ele saber que suas músicas eletrizantes que levavam seus fãs ao delírio, transformaram-se, em um povo não tão distante, num meio depravado de seus jovens se entregarem às suas vis inclinações.

Mas não se preocupem. Eu fiz a minha parte. Redigi a dissertação com o mesmo respeito com o qual o Neymar se dirige aos seus adversários em campo: sem reverência, sem piedade, sem modéstia. Não me acanhei diante da vulnerabilidade daquela circunstância. Fiz uma efêmera comparação de algumas rimas do funk nacional com a complexidade apoteótica existente em um concerto qualquer da Orquestra Filarmônica de Moscou. Aí finalizei, respirei fundo, dei um sorriso de canto e pensei comigo: o examinador desta prova vai pirar!